A discussão havida esta semana a respeito da liberação de emendas parlamentares por parte de ministérios do Governo Federal que beneficiam entidades controladas pela esquerda e empenhadas em levar adiante a agenda política comunista em temas como LGBT, aborto, políticas racialistas e outras, foi objeto de atenção do Crítica Nacional, que tratou extensivamente do tema no artigo GOVERNO FEDERAL REPASSA DE MODO DESNECESSÁRIO MILHÕES DE RECURSOS PÚBLICOS A ONGS ESQUERDISTAS.
A discussão envolve o conceito de impedimento técnico, mecanismo previsto na Constituição Federal e nas leis e que pode e deve ser usado pelo Governo Federal para não autorizar a liberação de recursos públicos para determinadas emendas, conforme demonstramos no artigo acima, que também traz uma entrevista com a gestora Jane Silva, com vasta experiência em administração pública, que exibiu vários exemplos de casos concretos em que emendas parlamentares não foram liberadas.
O conceito de impedimento técnico não é de natureza puramente burocrática formal, mas é um conceito jurídico muito bem fundamentado. No artigo-ensaio que se segue abaixo, o Dr. Evandro Pontes, colunista do Crítica Nacional, traz a fundamentação técnico-jurídica rigorosa do conceito de impedimento técnico, o que corrobora o ponto de vista adotado pelo Crítica Nacional nesse tema.
por evandro pontes
O debate sobre questões soi disant “técnicas”, in illo tempore Ciceri, caberia, obviamente, aos que dominavam a técnica (ou arte, de ars, como diria o próprio Cícero). Quando se trata de negócios da administração pública, quem domina a técnica são geralmente aqueles que, investidos da virtude cardinal da Prudência (leia-se, sabedoria), assim fornecem seus préstimos, auridos ao longo de anos de experiência.
Ao inexperiente (inexperto) cabe ler e, se der muita preguiça, ouvir calado.
Ocorre que passados séculos de experiência ciceroneana, vêm as redes sociais e aí qualquer energúmeno vira técnico ou “professor”: basta escrever no espaço dado à auto-identificação coisas como “Tio” ou “Professor”. No meu caso, mesmo não sendo tio de ninguém, coloquei lá esse estigma para fugir do de professor – outros, já, fazem o inverso.
Dito isso, vamos ao que interessa, já que há, aqui, experiência suficiente para investidura prudencial a fim de encarar o tema do impedimento técnico (extremamente simples para quem entende de Direito e não apenas de papelada e burocracia, coisa que até um retardado mental entende).
Antes porém, vale a pena analisar, hum… aspectos técnicos do direito administrativo.
O direito administrativo funciona de maneira completamente diversa de outras áreas do direito. Um ato administrativo, quando gera direitos, obedece a uma lógica jurídica integralmente diferente da lógica, v.g., reinante no direito dos contratos. Uma compra e venda de automóvel, por exemplo, não se interpreta da mesma forma que uma dotação orçamentária. Quem explica isso é o pai do Direito Administrativo, a saber, Maurice Hauriou.
Hauriou teve o cuidado, na virada do Século XIX para o XX, em obras como Précis de Droit Administratif et de Droit Public (esta, de 1892) e Précis de Droit Constitutionel (de 1923), de firmar essa diferença. Para quem deseja se tornar professor de verdade, é aconselhável ler essas obras, sendo que a primeira pode ser facilmente acessível aqui: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6525766p/f16.image
São obras com muitas páginas e Hauriou, um dos mais elegantes escritores em língua francesa, acaba tornando a vida do leitor um tanto quanto espinhosa. Por isso ele, um dos maiores juristas da história da humanidade, teve o cuidado de condensar suas principais ideias em textos mais curtos, que oscilam entre 30 e 80 páginas, destinados a principiantes.
Um dos mais importantes e que trata dessa diferença entre a lógica jurídica nas relações bilaterais vis-à-vis a das relações plurilaterais do direito administrativo, foi sedimentada no clássico texto L’Institution et le droit statutaire, de 1911 publicado na Recueil de Législation de Toulouse, no 2º volume da 2ª série.
Aos que não lêem francês, não há o que se preocupar – a tradução para o português existe (é de minha autoria, diga-se de passagem) e foi publicada no 4º Volume da Revista de Direito das Sociedades e dos Valores Mobiliários, pela Almedina, em Novembro de 2016.
Hauriou, um dos mais proficientes professores de direito romano, ensinou que em direito administrativo todos os atos têm natureza de ato jurídico complexo (o gesammtakt do direito alemão). Na introdução à tradução elaborada para o texto de Hauriou, há uma pequena explicação sobre o conteúdo do estudo do professor de Toulouse em que, lá, eu disse:
“Hauriou estuda o fenômeno da adesão aos fatos, que, amalgamando e encadeando essas adesões a estes para legitimar-lhes a respectiva execução e cumprimento, deságua num debate sobre o ato jurídico complexo“. Marquem ai a palavra execução e cumprimento, pois ela é muito importante para se entender tecnicamente quando um impedimento pode ocorrer.
Portanto, em atos administrativos não há propriamente o estabelecimento de uma relação em que se dispõe “começo, meio e fim”, qual seja – a fixação no tempo de um ato que começa com uma proposta, desenvolve-se pela aceitação e se encerra com pagamento versus entrega. Isso se dá com precisão no direito contratual (por exemplo), mas no direito administrativo, muita vez o final de um ato já é o começo de outro e assim por diante. Os atos são “encadeados”, como elos de uma longa corrente.
Desta forma, em direito financeiro (nome ruim dado ao desdobramento do direito administrativo relacionado às dotações orçamentárias), a aprovação de uma emenda pode ser o final de um processo administrativo de natureza legislativa e, ao mesmo tempo, o início de um outro processo administrativo de natureza executiva e assim por diante.
O que Hauriou explica é que as nulidades e impedimentos no direito administrativo obedecem, portanto, à disciplina do ato jurídico complexo e extrapolam o seu âmbito até o fim da fase executiva de um determinado ato (“Interrogeons encore le droit administratif; il a le grand avantage de posséder des voies de nullité spéciales contre les décisions exécutoires“, convidava o mestre na p. 144 de seu artigo que assim resolvi traduzir: “Pesquisemos então no âmbito do direito administrativo, que tem a grande vantagem de possuir os canais de nulidade especial contra as decisões executórias”).
E por que Hauriou se centra de maneira tão enfática na execução da medida? Ora, é na execução que o direito irá viver – antes disso se fala em gestação do direito e qualquer impedimento ou nulidade que surja antes de sua concepção real obriga o administrador público a abortar esse direito. Já, impedir-lhe a execução, o que é tão viável quanto impedir o seu nascimento, se faz por ferramentas de impugnação próprias e, neste caso, o domínio da técnica precisa ser muito maior do que o domínio de burocracias.
Em outras palavras, é necessário saber Direito para se meter neste tema.
E, independentemente da natureza do ato, como os direitos nascem?
A Criação do Direito, assunto de domínio de poucos (dentre eles, o Mestre Miguel Reale, o inigualável Pontes de Miranda e o saudoso Goffredo da Silva Telles Jr., além do decano Marcos Bernardes de Mello), cuida exatamente deste detalhe técnico de como surgem não apenas os direitos, mas sobretudo as obrigações.
Algo só se torna obrigatório (e, por isso, impositivo) se todos os trâmites até a execução de uma medida são devidamente transcorridos. Medidas verdadeiramente impositivas (como o caso das potestatividades – se houver dúvida acerca disso, consultem minha dissertação de Mestrado sobre O Conselho Fiscal nas Companhias Abertas, onde, logo no início eu explico sobre isso com base na teoria de Santoro Passarelli), inclusive, vinculam o obrigado se até a execução, todo e qualquer vício tenha sido superado.
Exemplo disso é o pagamento de dividendos nas companhias abertas: é direito potestativo do acionista, verdadeiramente impositivo, mas da apuração do lucro até o depósito do valor, a administração é dotada de mecanismos que protegem a companhia contra, por exemplo, os eventos de força maior. E é por isso que a lei dispõe de mecanismo para suspensão do pagamento, que o Mestre Nelson Eizirik já ensinou:
“Visando contrabalançar o princípio da obrigatoriedade do pagamento de dividendos com uma alternativa que faculte a não distribuição de lucros em atenção ao interesse social, a Lei das S.A., no §4º deste artigo [202], admite que o dividendo obrigatório possa ser suspenso no exercício em que os órgãos da administração informam à assembleia geral ordinária ser ele incompatível com a situação financeira da companhia, ou seja, quando ela não possui caixa” (os grifos são meus: A Lei das S/A Comentada, vol. 3, 2ª ed., p.547).
A comparação é absolutamente proposital pois é o próprio Hauriou que já o fazia em fins do século XIX: a gestão dos negócios públicos têm a mesma natureza jurídica da gestão dos negócios privados nas sociedades comerciais – elas obedecem a um raciocínio de ato jurídico complexo (qual seja, atos “em cadeia”).
Não seria descabido, portanto, dizer que “visando contrabalançar o princípio da impositividade das emendas orçamentárias com uma alternativa que faculte a sua não execução em atenção ao interesse social, a lei, no caso a Portaria Interministerial 43 de 2020, admite que a emenda possa ser suspensa quando a administração pública informar ao povo que certas distribuições de dinheiro público são incompatíveis com a situação financeira do Brasil“.
Isso é, portanto, apenas um (dentre inúmeros que posso objetar) exemplo de impedimento de ordem técnica.
Gente mal formada em temas jurídicos é incapaz de alcançar tais detalhes. É necessário algum tempo de estudo e umas boas décadas de prática e, como diria o Professor Paulo Guedes, “horas-bunda na frente de clientes”, para que se alcancem tais detalhes.
Hoje em dia parece que essa miríade de gente mal formada está toda alojada no governo ou em contas de twitter aplaudindo cretinices praticadas por burocratas de esquerda infiltrados na máquina estatal para servir doces e sobremesas em forma de arco-íris para o establishment.
Gente pois, que não tem a menor ideia das etapas de formação dos direitos em atos administrativos.
Vai ai um presente a quem não abandonou este texto antes e só entende as coisas por meio de trololós de youtubers – passo a explicar como se forma um direito (e, consequentemente, uma obrigação jurídica e como, por consequência, se impede que a obrigação se forme ou, uma vez formada, se execute).
De modo geral o direito se forma por meio de três fases não estanques: 1. a fase constitutiva (ou formativa stricto sensu); 2. a fase atributiva (ou declarativa); e 3. a fase executiva (ou de “cumprimento” ou “entrega”).
Na fase constitutiva, as partes legítimas debatem meios de se criar um certo direito ou obrigação. No caso das emendas ao orçamento (que são, vejam só, o início de ato de “emenda” mas, ao mesmo tempo, a fase final de uma “dotação orçamentária”, daí o “encadeamento” de que nos fala Hauriou), elas se “criam” muito antes da propositura da emenda, a saber, na própria pasta que detém os recursos.
A pasta que detém os recursos têm programas, que são nada mais, nada menos do que planos de ação para políticas públicas. As políticas públicas são, grosso modo, as “promessas de campanha” de um candidato vencedor. Essas promessas são transformadas em programas, nos quais uma previsão orçamentária é passada ao legislativo pelo Projeto de Lei de Orçamento elaborado pela Presidência da República, auxiliada pelos seus Ministros e Secretários de Estado.
É ali que o direito está se formando, qual seja, vai se constituindo.
Portanto, se uma emenda orçamentária destina parte das verbas públicas para um programa associado a uma política pública de proteção a direitos LGBT ou confecção de kit gay para escolas, isso decorre de um programa da pasta em questão que é orçado e, assim, informado aos deputados para que façam suas emendas e destaquem os valores para cada programa de iniciativa do Poder Executivo. Se o programa está lá porque lhe enfiou na pasta o atual governo ou o anterior, isso já são outros 500. Fato é que o programa está lá no colo do atual governo.
Aos amigos do mercado de capitais, essa historinha de emendas é bem parecida com os bookbuildings dos IPOs (incluindo as palhaçadas decorrentes da proximidade de certos investidores com o coordenador líder – faça ai sua analogia, amigo). Assim, nessa segunda fase, o direito é atribuído, qual seja, declara-se formalmente quanto, quem se beneficia e quando esse beneficiário vai (literalmente) gozar.
Em termos orçamentários, a emenda é objeto de análises e pareceres que recebem da pasta que criou o programa e está distribuindo o dinheiro para deputados via emendas, o simples carimbo “Pela Aprovação”.
Tem-se ai declarado o direito (de modo semelhante, pode-se pensar na declaração de dividendos). Esse seria um ótimo momento (mas jamais o único) para se objetar impedimentos. Exemplo disso é o instituto do casamento – este, igualmente, um instituto cuja natureza jurídica tem aspectos de ato jurídico complexo.
As obrigações conjugais subexistem até a celebração do casamento, mas por lei, seguem ao longo de sua execução, onde os impedimentos (tanto os dirimentes, públicos ou privados, quanto os impedientes) podem dar causa a nulidades ou sanções diversas, mesmo no curso da execução dos direitos e obrigações (vide a doutrina sobre o art. 1.521 do Código Civil).
Por isso é que dizemos que a celebração de um direito é o momento ideal de apontamento de impedimento, embora não seja o único. Dentre os impedimentos idealmente indicáveis antes do início da execução, há os de ordem burocrática e que não se confundem e nem descartam os impedimentos de ordem técnica.
Os impedimentos burocráticos dizem respeito à forma da documentação, prazos, requisitos formais do beneficiário (se tem certa licença, se tem prazo de constituição superior a “x” anos e etc). Não são, propriamente, impedimentos técnicos. Como se verá, há ainda impedimento técnico-burocráticos relacionados ao imbroglio orçamentário e que dizem respeito à prioridade do beneficiário.
Os técnicos stricto sensu podem ser de natureza jurídica ou de natureza estritamente técnica ligada ao conteúdo do programa em questão. Vai ai um exemplo: se um certo programa no Ministério da Infraestrutura envolve a construção de uma ponte em certo lugar, é legítimo que se apresente impedimentos relacionados àqueles conhecimentos da engenharia civil – se com aquele orçamento é possível construir algo seguro, se as condições de agrimensura e topografia permitem a construção de uma ponte no local indicado e etc.
Já, os jurídicos, podem dizer respeito a termos, condições, objeto da obrigação a ser constituída, validade do ato jurídico, compatibilidade com as políticas públicas compromissadas, existência de um programa com critérios objetivos para a distribuição do dinheiro e etc.
Note-se que esses impedimentos jurídicos não se exaurem na fase de constituição. Como mostrou Hauriou, eles vão além e alcançam sim a fase de execução. Citei força maior, mas há também casos fortuitos, nulidades insanáveis e por ai vai. Tudo pode ser resolvido tanto no âmbito administrativo quanto no âmbito judicial (ou, preferencial e sequencialmente, primeiro lá, depois aqui).
E no caso de uma emenda orçamentária, o impedimento técnico não deixa de existir só porque a emenda superou a fase de constituição. O impedimento técnico (incluindo os de natureza técnico-jurídica) vão além e persistem até a fase de execução.
É por isso que a Portaria Interministerial n° 43 de 2020, em seu artigo 14 dispõe: Se a análise técnica de que trata o art. 5º concluir pela inexistência de impedimento de ordem técnica, os Órgãos Setoriais e as Unidades Orçamentárias do SPOF deverão proceder à execução orçamentária da despesa, ressalvados os casos de emendas com beneficiários não priorizados e as programações objeto de crédito adicional em tramitação.
O art. 5º trata do conceito de impedimento e do melhor momento para arguí-lo. No momento da execução, há certa preclusão de arguição de impedimento o que levaria, sob o ponto de vista potestativo, a uma execução imediata, mas isso só vale para beneficários priorizados. O art. 4º estabelece que a prioridade existe em relação a beneficiários de “ações e serviços públicos de saúde”.
Ora, políticas LGBT não estão entre os “beneficiários priorizados” e só por isso (sem contar que a pandemia que atormenta a economia do país) já se é possível usar o art. 14, combinado com o art. 5º, §1º, inciso XIII (que permite a identificação aberta de “outras razões de ordem técnica devidamente justificadas”) para espancar o ridículo argumento que, caso a Presidência da República questione gastos inúteis em plena pandemia, estaria ela incorrendo em “crime de responsabilidade”.
É justamente o oposto! Gastar com políticas LGBT em plena pandemia, flertando com furos no teto é que, sim, seria um convite ao impeachment (sem contar no incomensurável prejuízo político decorrente da inação diante de políticas programadas dentro de um dos Ministérios e cujo o escopo é irrigar ONGs que irão, futuramente, empenhar recursos públicos em ações contrárias às pautas do governo eleito).
Aliás, essa batalha lógico-jurídico da pandemia x LGBT é algo que me daria muito prazer em tripudiar judicialmente perante os tarados do isolamento que são, muitos, simpatizantes da causa LGBT. A arguição do impedimento técnico extemporâneo é uma lacuna cristalina na Constituição, na Lei (a saber, na própria lei de orçamento, a de nr. 13.898 de 2019) bem como na Portaria nr. 43 de 2020.
E nem o direito e tanto menos a política se compadecem com lacunas: se o governo não age, a lacuna é ocupada por oportunistas, que vão dizer que o governo está obrigado a fazer algo que nem de longe, nas mãos de um professor de verdade, de fato estaria.
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