Independência: Origem e Chamado

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Ernesto Araújo
A Independência é a origem do Brasil. Origem não significa apenas começo na linha do tempo. Significa criação do nosso espaço de vida nacional. Com ela somos permanentemente chamados a conversar e conviver, no fundo da alma e à margem do tempo. O ideal da Independência, somos hoje mais que nunca convocados a cumpri-lo.

Dom Pedro I, pai da pátria, o primeiro dos brasileiros, irmão e defensor perpétuo, nos acena aflito, dessa distância tão próxima, através da floresta de esquecimento e crime. Apela a nós, brasileiros bicentenários, e exclama, mesmo suplica: “Imitai-me!” (*) Imitai-me no sacrifício pelo ideal de liberdade e grandeza.

Esse ideal define o nosso horizonte. Dele estamos, hoje, muito aquém. Refugiamo-nos num cantinho escuro de nós mesmos, com um misto de medo, ignorância e despeito, e nos recusamos a preencher nosso próprio destino. Complacência e mediocridade é o que hoje nos define, dentro de casa e diante do mundo, não a liberdade e a grandeza sonhadas na origem.

Dom Pedro comparou a vinda da família real para o Brasil à epopeia de Virgílio, a Eneida. Tal qual Enéas, deixando Troia incendiada com o pai Anquises às costas e o filho Ascânio pela mão, para, após aventurosa navegação, chegar ao Lácio e plantar a semente da futura Roma, senhora do mundo, Dom João deixa Portugal invadido pela tirania napoleônica, com a mãe Dona Maria I e o filho Pedro, para fundar um novo e verdadeiro império, “um Estado que deve um dia ser o primeiro do mundo”, como escreveria o próprio Dom Pedro.

A origem do Brasil reproduz e retoma a origem de Roma. Nada menos. Não nascemos na modéstia e pequenez. Não nascemos para ser apenas mais um país em um globo de indiferenças. Em verdade, nenhuma nação nasce para ser apenas mais uma, porém hoje o globalismo, esse grande ladrão de sonhos e achacador de liberdades, vem até os braços de cada nação, invade o íntimo lar de cada pessoa, para roubar-nos a identidade, o ser profundo de povos e indivíduos, esse mistério frágil e insubstituível, chave do sentido e mapa da felicidade.

O Brasil, certamente, não nasceu para apenas ocupar mais uma vaga qualquer no estacionamento cinzento de um mundo desencantado. Não nascemos para seguir escrupulosamente os “consensos globais” nem para sermos funcionários muito pragmáticos da hegemonia chinesa. 

Esse destino da máxima grandeza surgiu irmanado ao instinto de liberdade. Não liberdade no sentido burocrático do bom funcionamento das instituições. Dessa também carecemos hoje, mas não é ela que desenha o nosso horizonte, e sim a liberdade idealizada e sonhada, que provém como um amor inefável da altura transcendente e nos toca o coração, e que nos acompanha, como todo amor, até o ponto do sacrifício último, o sacrifício do sangue, como o de Cristo na cruz:

“Pois foi para a liberdade que Cristo nos libertou”, diz São Paulo na epístola aos Gálatas. “Não vos deixeis submeter novamente ao jugo da escravidão.”

No coração da fé cristã reside o anseio e o amor pela liberdade. Não a justiça, não a igualdade, não a virtude, mas a liberdade. Do exercício dessa liberdade é que decorrem todas as virtudes e bens. E essa fé da liberdade, do Deus libertador e do homem criado para a liberdade, escravizado mas chamado a reencontrá-la, essa fé constitui a seiva da nossa origem na Independência.

Não se trata da influência maior ou menor da Igreja sobre as decisões de D. Pedro, mas da fé que o imbuía e que faz seu gesto varonil ultrapassar de muito o terreno da política e servir de bênção iniciadora a todo um povo.

Transcendência, sacrifício, amor, liberdade, ideal de grandeza são os verdadeiros ingredientes do Brasil original.

Grandeza e liberdade de quem? De um povo. Esse povo do qual fala com orgulho e emoção o primeiro Imperador, cuja voz sentimos vibrar até hoje, abafando o silêncio da pragmática indiferença, sentimos vibrar de fúria libertadora e carinho fraterno, filial, paternal, vibrar de amor e de esperança quando diz: “o povo brasileiro…” Nascemos como povo, não como um conchavo da elite.

O povo contra a facção, contra a classe política e suas artimanhas, composições, perfídias, manipulação e ganância. Esse é o nosso drama desde a Independência, são as duas forças em disputa pela alma da nação. O povo para elevá-la ao seu destino inigualável, a facção para destruí-la e locupletar-se de poder e torpeza sobre um corpo vazio de vida. Dom Pedro e o povo, de um lado.

Do outro as Cortes de Lisboa e seus descendentes até hoje, a longa galeria de oligarquias, que durante o Império ainda respeitavam os Imperadores e até certo ponto seguiam seus ideais fundadores, mas que desde a República vivem soltas e comprazidas, sempre urdindo novas regras e desregras para expandir seu poder, vendendo a alma a preço vil a quem quiser comprar.

Dessa batalha infinita vivemos hoje um momento crucial. Em sua magnífica carta a D. João VI, de 22 de setembro de 1822, quando contemplava o Brasil ainda no berço de recém-nascido, Dom Pedro, diante das ordens espúrias da facção, a oligarquia predadora da época, proclamava com simplicidade e firmeza: “Nós, brasileiros livres (…) respondemos em duas palavras: ‘Não queremos’.”

Não queremos a facção “hedionda, maquiavélica e pestífera”, como a vituperava o Imperador. Imitemos Dom Pedro, inspirados pelo seu coração generoso que veio ao Brasil para o bicentenário, talvez para mostrar-nos que nunca nos deixou e nunca nos deixará, presença real do símbolo de um amor poderoso pela pátria, e enfrentemos aquela facção maldita, atendamos ao apelo da origem de quem somos.

A Independência é um chamado, um chamado trovejante de urgência a nós, brasileiros de hoje. Chamado para que sejamos povo, em busca da liberdade, compenetrados de um destino de grandeza, inspirados pelo herói fundador, com fé em Deus e prontos ao sacrifício.

(*) Da carta de D. Pedro I a D. João VI, datada de 22 de setembro de 1822. Pela atenção a esse documento fundacional, e de um modo geral pelas ideias do presente texto sou tributário do extraordinário livro “Os Pilares da Independência do Brasil”, de Evandro Fernandes de Pontes, editado pela FUNAG/Itamaraty durante minha gestão no MRE e de Roberto Goidanich na Presidência da FUNAG.

Publicado originalmente no site logopolitica.com do ministro Ernesto Araújo.


 

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