por evandro pontes
A operação Lava Jato, iniciada em 2014 meses depois do encerramento, no STF, do julgamento do Mensalão, foi um marco não apenas na política, mas também no universo jurídico. Mudou a forma como o processo penal é lido – mas não só: o direito empresarial, as ciências contábeis, o direito administrativo foram todos afetados e a “ciência autônoma” do compliance (uma verdadeira fraude intelectual) se consolidou.
A operação Lava Jato desenvolveu uma técnica de investigação de crimes financeiros que faz sentido. Causou polêmica nos meios acadêmicos. Eu mesmo defendi a técnica em artigos acadêmicos e, declaradamente sigo defendendo os mecanismos para a investigação desse tipo específico de crime: rapina de somas vultuosas de dinheiro público com vistas a financiar um projeto de poder associado a ditaduras genocidas.
Isso faz com que a operação Lava Jato não seja propriamente algo demonizável per se. Na esteira do Mensalão, a Lava Jato aprofundou a descoberta de um esquema que o Professor Olavo de Carvalho já vinha denunciando há anos – a estrutura criminosa de controle estatal arquitetada pelos partidos membros do Foro de São Paulo.
E eis aí o problema número um da Lava Jato: ao chegar nas portas do Foro de São Paulo, tendo passado por esquemas envolvendo o PSDB, partido aliado dos membros que operaram a máquina de investigação lavajatista, a operação simplesmente parou ao ponto de recuar até a soltura do Lula e na interrupção da investigação de políticos e de outros núcleos de escoamento de dinheiro, como o BNDES, a Eletrobrás e os fundos de pensão das estatais (PREVI, PETROS, Funcef, Postalis, etc).
Deste pormenor extraímos uma primeira conclusão importante: a Operação Lava Jato não se confunde com o conceito, mais amplo, de combate à corrupção. Os líderes da Lava Jato, dentre eles o ex-Ministro Moro, se apoderaram do conceito de “combate à corrupção” e maliciosamente o transformaram em “Lavajato”.
A “Lavajato” nada mais é do que a frustrada operação de investigação da corrupção especificamente praticada pelo PT e pelo Foro de São Paulo. Há outras formas e tipos de corrupção (na época do PSDB havia o escândalo dos Sanguessugas assim como hoje há algo parecido com o “Covidão”, que nada tem a ver com “Lavajato” ou com Foro de SP).
Desta forma, como operação policial que desbarataria o esquema de corrupção do Foro de São Paulo a Lavajato foi um desastre, um verdadeiro fracasso: prendeu inúmeros empresários, desvendou crimes de políticos e prendeu alguns ex-políticos (incluindo Lula, numa execução de pena em uma “sala do Estado Maior” mais que suspeita…), mas parou por ai.
Nem mesmo sua versão no STF atingiu deputados e, o principal, a operação parou e foi abortada quando os laços com ditaduras no exterior ficaram inquestionáveis. Neste pormenor, os líderes foram coniventes no ritmo de inércia imposto a partir da vitória de Jair Bolsonaro em 2018 (talvez até um pouco antes).
O problema número dois da Lava Jato foi seu legado: deixou ao Brasil o que chamo de “lavajatismo” – uma técnica de investigação muito eficiente para investigar corrupção, lavagem de dinheiro e ardis milionários que atingiram os cofres públicos, mas imprestável para investigar crimes comuns (disse isso em um texto de maio de 2018, publicado na RDSVM onde comentava o julgamento na CVM do Caso “Banco do Brasil – Visanet”, o cerne do Mensalão).
Desse problema número dois, talvez o seu pior legado seja realmente a relação promíscua estabelecida entre o Estado-policial e a imprensa.
A relação entre polícia e imprensa não é nova
Lembro-me dos tempos de ouro do rádio brasileiro, onde a figura do genial Gil Gomes imperava na crônica policial. Parte da minha educação jornalística paga pedágio para Gil Gomes, um gênio da comunicação e do jornalismo policial. Transitar nos meios policiais era necessário. Afanásio Jazádji, algum tempo depois, tentou ir pelo mesmo caminho, mas a ambição política falou mais alto que o dom que tinha para a crônica policial.
A diferença, entretanto, desse jornalismo policial clássico para o lavajatismo é o seu escopo, qual seja, a sua finalidade: Gil Gomes, assim como Afanásio, estavam atrás dos fatos (e, portanto, da polícia) para informar e elucidar algo a posteriori. No lavajatismo a situação é oposta: a dita imprensa colabora como parte do processo investigativo e a elucidação é sempre a priori.
Vejam o Antagonista: não se trata de elucidação a posteriori – não explicam nem desvendam um caso resolvido pela polícia, mas antecipam; qual seja, elucidam a priori, ganhando simpatia do leitor, a fim de extrair dele um apoio popular a algo que a polícia fará de naturalmente impopular.
A diferença parece ser sutil, mas não é. No caso de um crime financeiro, essa elucidação a priori serve para que as pessoas entendam a complexidade de um esquema como aquele visto no âmago do “departamento de operações estruturadas” da Odebrecht. Mas em um crime comum, essa elucidação tem cristalino viés de transformar coincidências em evidências. Há, espontaneamente (de forma consciente ou não) a criação de uma viabilidade probatória que fora dos autos dificilmente ocorreria.
Mesmo em crimes financeiros, sempre me pareceu além das fronteiras esse uso agressivo da imprensa. Mas em um cenário como o brasileiro, de corrupção da inteligência tão fartamente explanada por Flávio Gordon em todas as redações de jornais e revistas, essa técnica rendeu frutos, pois no que podia depender da imprensa amiga do governo, a Lava Jato jamais poderia ter acontecido.
No lavajatismo, essa “amizade” e essa colaboração como fonte, rende hoje colunistas controversos ao conglomerado Mare Nostrum: tanto o juiz quanto o principal procurador são agora colunistas e foram oficializados como genuínos criadores de narrativas daqueles hebdos, ao modo da elucidação a priori.
O precedente da Operação Mãos Limpas
Muitos certamente dirão que narrativa, de fato, é o que eu estaria buscando aqui, neste texto e que a relação imprensa/polícia é, no lavajatismo, normal e sadia. Mas quem afirma o inverso não sou eu. É o Professor Sérgio Moro. Escrevendo na qualidade de acadêmico e especialista em crimes financeiros, Moro deixou-nos em 2004, em um texto “científico”, todas as pistas dessa cultura investigativa chamada de lavajatismo, hoje já alçada a condição de verdadeira “seita política”.
Em seu Considerações sobre a operação Mani Pulite, Moro analisa tecnicamente o precedente italiano e destaca quais as características e elementos que ele considerava centrais nessa cultura investigativa. Citando Mark Gilbert, Moro extrai isto da experiência italiana:
“para desgosto dos líderes do Partido Socialista Italiano, que, por certo, nunca pararam de manipular a imprensa, a investigação da ‘mani pulite’ vazava como uma peneira. Tão logo alguém era preso, detalhes de sua confissão eram veiculados no ‘L’Espresso’, no ‘La Republica’ e em outros jornais e revistas simpatizantes. Apesar de não existir nenhuma sugestão de que algum dos procuradores mais envolvidos com a investigação teria deliberadamente alimentado a imprensa com informações, os vazamentos serviam a um propósito útil. O constante fluxo de revelações manteve o interesse do público elevado e os líderes partidários na defensiva” (grifei).
Veja como ele mesmo costura sua conclusão:
“A publicidade conferida às investigações teve o efeito salutar de alertar os investigados em potencial sobre o aumento da massa de informações nas mãos dos magistrados, favorecendo novas confissões e colaborações. Mais importante: garantiu o apoio da opinião pública às ações judiciais, impedindo que as figuras públicas investigadas obstruíssem o trabalho dos magistrados, o que, como visto, foi de fato tentado.
Há sempre o risco de lesão indevida à honra do investigado ou acusado. Cabe aqui, porém, o cuidado na desvelação de fatos relativos à investigação, e não a proibição abstrata de divulgação, pois a publicidade tem objetivos legítimos e que não podem ser alcançados por outros meios. As prisões, confissões e a publicidade conferida às informações obtidas geram um círculo virtuoso, consistindo na única explicação possível para a magnitude dos resultados obtidos pela operação mani pulite” (grifei).
As palavras de Moro são proféticas: ele não apenas reconhece o risco de ferimento à reputação do investigado, algo que o Moro juiz teve muito menos escrúpulos que o professor, sempre colocando os objetivos “legítimos” de Estado acima do risco a direitos individuais de cada investigado, que se bem aquilatados na Lava Jato por um bom senso de proporções, viu-se completamente abandonado no caso da “interferência da PF” ou nas “rachadinhas do Queiróz”.
Note ainda que aqui Moro coloca os antagonistas a anos-luz de distância de Gil Gomes: seja na inteligência jornalística, seja na apuração dos fatos, mas seja, sobretudo, em relação à intenção principal do jornalista.
E esta é ainda uma diferença essencial do que Moro descreveu sobre a Mani Pulite em relação ao que foi a Lava Jato e sobretudo ao que está sendo na era das “investigações de fake news”.
Decorrência direta disso é a imprensa em 1994/1995 (tempo do Mani Pulite), 2004 (tempo em que Moro escreveu aquele texto), 2014 (tempo em que ocorreu a Lava Jato) e 2020 (hoje). A imprensa de hoje e o seu alinhamento político nada tem a ver com a imprensa italiana de 1994, a começar pela forma de apresentação dos fatos (jornal impresso no dia seguinte, com redações enormes e um cuidado gigantesco com a linguagem versus blogues com 3 linhas e muitas ejaculações precoces jornalísticas sem o menor cuidado com o vernáculo). Essa diferenças são o grande erro, diga-se de passagem, da análise de Rodrigo Chemim em seu best-seller Mãos Limpas e Lava Jato – a corrupção se olha no espelho (de 2017).
No lavajatismo aplicado a crimes comuns, este de 2020, a imprensa é parte da equipe investigativa, um longa manus do Estado-policial que opera para transformar coincidências em evidências.
No lavajatismo de 2014-2018 essa característica de quasae-membro da equipe ficou cristalina em 2020 e, na Mani Pulite em 1994 jamais ocorreu: naquela Itália imprensa era imprensa, ainda que muito simpatizante. Com Moro, a imprensa simpatizante se tornou parte do processo. Curiosamente, a imprensa antagonizante também: fato que explica a participação do Intercept como fator de anulação de vários processos sem que uma ação judicial sequer tenha sido movida pelas vítimas, a saber, o juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol.
É isso que em 2004 Moro professor chamou de círculo virtuoso – o jornalista alça uma coincidência ao grau de fato principal e daí a transforma em evidência; testa o público, ganha aderência e empresta o argumento ao acusador abrindo portas para que fatos coincidentes se tornem indícios.
E assim, sendo percebidas como indício, o art. 239 do Código de Processo Penal é desenterrado: “considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias”.
A interpretação do artigo não é simples, pois o seu núcleo reside na ideia inversa do processo tradicional: todo centrado na técnica da dedução, esse é o único artigo que permite indução. O problema é aristotélico para quem se interessa por isso, e como nem 1% de quem lida com processo penal liga para Aristóteles, o 239 se torna uma técnica de manipulação, sobretudo no Brasil, onde não há o parâmetro do beyond any shadow of doubt (resultado de séculos de método socrático nas faculdades de direito nos Estados Unidos).
O compartilhamento de antemão com a imprensa amiga faz com que o objeto da “investigação” se torne conhecido e a sua relação com o fato, mesmo que por coincidências, se torne circunstância provada. Parece um passe de mágica, mas como todo trabalho de ilusionista não passa de um truque de luz e sombras: põe-se na luz o que se quer, na sombra o que se precisa.
O lavajatismo com um triplex em mãos fez estrago no PT e no governo Lula e Dilma: não foi sem merecer. Mas que o atual governo fique bem atento – uma “rachadinha” está longe de ser um triplex, Queiróz está longe de ser um Zé Dirceu, as cifras estão tão distantes quanto a Terra de Saturno e a gravidade e a finalidade das acusações são tão distintas quanto o preto é do branco: nada disso, porém, deve ser considerado quando a pretensão política de seu adversário começa com o circo que Moro armou para a sua saída, vitimando, nada mais, nada menos que um dos mais importantes Ministros de Estado do governo Bolsonaro, hoje em exílio.
Salve Abraham, este texto eu dedico a você!
Crítica Nacional Notícias:
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