Voto Eletrônico & Voto em Cédula: O Que Diz A Legislação Eleitoral

por paulo eneas
Um grupo de ativistas tem tentado fazer valer a tese da suposta ilegalidade do pleito eleitoral desse ano em decorrência do uso das urnas eletrônicas. A discussão suscitada por esse grupo, que promoveu um lobby no Congresso Nacional para a formação de uma Frente Parlamentar destinada, em tese, a demandar o escrutínio público dos votos, parte de alguns pressupostos de natureza legal que iremos abordar aqui para mostrar seu caráter falacioso.

O caráter falacioso da tese da ilegalidade das eleições vem revestido de um apelo retórico que aparentemente impressiona aos mais desavisados, mas que não resiste a uma análise criteriosa e cuidadosa do que diz a lei, o texto constitucional e até mesmo os conceitos básicos de direito público e de direito administrativo.

Analisaremos os principais argumentos jurídico-formais desses ativistas nos parágrafos abaixo, à luz do que diz a legislação eleitoral vigente e o texto constitucional, seguindo sempre as regras apropriadas da hermenêutica. E encerraremos expondo nosso ponto de vista sobre as motivações políticas daqueles que pretendem hoje, sob pretexto de um excesso de zelo pseudo-legalista, propagar a ideia de que as eleições são ilegais e ilegítimas independentemente de seu resultado e, com isso, fornecer material e argumento para a esquerda vir a questionar a legitimidade de nossa altamente provável vitória em outubro próximo.

Tese 1: As eleições são ilegais e inconstitucionais pois a apuração secreta fere o princípio da publicidade dos atos administrativos.
A apuração secreta de votos é inaceitável sob todos os aspectos, mas não pelas razões apresentadas na tese. Os princípios que devem reger a administração pública estão estabelecidos na Constituição Federal, onde está escrito:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte (…)

Observe-se que o texto constitucional começa falando em princípio da legalidade, pois o entendimento que se tem é que este princípio “(…) é basilar do regime jurídico-administrativo, pois além de ser essencial, específico e informador, submete o Estado à lei. A Administração Pública só pode ser exercida na conformidade da lei. Trata-se, portanto, da garantia mais importante do cidadão, protegendo-o de abusos dos agentes administrativos e limitando o Poder do Estado em interferir na esfera das liberdades individuais” (1).

O princípio da legalidade é o mais importante do direito administrativo, e dele decorre os demais princípios da impessoalidade, moralidade, e seguintes. O princípio da legalidade está consubstanciado no inciso II do Art. 5 da Constituição, que trata dos direitos e garantias fundamentais:

Art. 5. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

Na esfera da administração pública, esse princípio traduz-se no exposto no Art. 37  que, ao invocar o princípio da legalidade, deixa claro que o agente público somente poderá realizar atos previstos em lei. Caso contrário, esses atos não terão validade. Ou seja, o princípio da legalidade é uma barreira intransponível no direito administrativo, pois sem legalidade e sem lei que ampare seus atos, não existe possibilidade de ser realizar o direito público. E o direito eleitoral encontra-se na esfera do direito público, não do direito privado.

Por sua vez, o princípio da publicidade dos atos administrativos deve ser entendido como uma questão acessória e está condicionado à possibilidade, definida em lei, de dar-se publicidade a determinados atos da administração pública. A própria Constituição Federal deixa claro esse caráter acessório, condicionado à possibilidade, da publicidade dos atos administrativos, no capítulo sobre administração pública, onde diz:

Art. 37. A administração pública direta e indireta (…)
XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;

Ou seja, a Constituição Federal deixa claro, no artigo referente às garantias e direitos fundamentais, que os atos da administração pública devem pautar-se pelo princípio da legalidade. Ao mesmo tempo deixa claro que a publicidade desses atos é um princípio consectário acessório que está condicionado a questões de segurança da sociedade e do Estado, bem como a direitos fundamentais da privacidade e da intimidade.

O exemplo mais patente é o da prestação jurisdicional, que no escopo dessa discussão deve ser entendido como ato administrativo, uma vez que a justiça somente pode ser exercida por um agente do Estado: o juiz tem a obrigação de agir seguindo o princípio da legalidade, por óbvio. Mas nem todos os seus atos podem ter publicidade, e o mecanismo de segredo de justiça, que existe para assegurar o direito fundamental da privacidade e da intimidade das partes envolvidas, existe justamente para isso.

Portanto, invocar o princípio da publicidade de atos administrativos para arguir a ilegalidade da apuração secreta é um exercício de péssima hermenêutica. Esse argumento não serviria de fundamentação para uma sustentação em juízo, assim como não serve para fundamentar a demanda, de todo correta e legítima, para o escrutínio público dos votos. Se for para exercer essa demanda com base em fundamentação legal, é preciso escolher outro caminho.

Tese 2: O princípio da anualidade da lei eleitoral diz respeito às condições da disputa e não à forma de organização das eleições.
Essa tese é de uma fragilidade primária. A Constituição Federal estabelece a regra segundo a qual a legislação eleitoral deve ser definida em até um ano antes da data de realização do pleito. A redação do texto constitucional possui forma negativa nesse caso, e diz:

Art. 16. A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência.

Aqui é importante lembrar uma regra elementar de hermenêutica: no direito público vale o que está escrito, não cabendo interpretação de natureza analógica, sistemática ou semelhante. Portanto, não cabe fazer interpretação por analogia ou sistematização retórica daquilo que está escrito no texto constitucional, que é claro nesse sentido: diz que a lei que rege o processo eleitoral deve obedecer ao princípio da anualidade. E o texto fala em lei que rege o processo eleitoral, e não em lei que rege as condições da disputa entre os postulantes independentemente da forma de organização das eleições.

A eleições brasileiras são regidas pela Lei No. 9504 de 30/06/1997, e alterações subsequentes, e que pode ser vista na íntegra nesse link aqui. A lei contém cento e dois artigos e regula todos os aspectos do processo eleitoral, e abrange as normas para coligações partidárias, convenções partidárias e registro de candidaturas, regras de financiamento, gastos e prestação de contas de campanhas, passando por pesquisas, propaganda eleitoral, sistema de votação e fiscalização das eleições.

Portanto, alegar que o princípio da anualidade diz respeito apenas às condições da disputa entre os pleiteantes é um sofisma, que consiste em enxergar apenas aquilo que interessa ver na lei e ignorar o resto tão somente para fazer valer uma premissa, falsa, já assumida a priori.

Tese 3: Ao suspender a lei do voto impresso, o STF alterou a legislação eleitoral a menos de um ano das eleições, o que torna essas eleições ilegais e inconstitucionais
Essa tese parte de um entendimento equivocado e ignora a diferença entre o processo ordinário de legislar realizado pelo poder legislativo, e a tutela de constitucionalidade de uma lei, exercida pelo poder judiciário.

O Art. 16 da Constituição Federal estabelece o princípio da anualidade da legislação eleitoral no que diz respeito ao processo ordinário de elaboração ou modificação de uma lei, feito pelo poder legislativo. Ou seja, a Constituição estabelece um prazo mínimo para que o legislativo exerça sua prerrogativa de legislar sobre as eleições.

A declaração de inconstitucionalidade de uma lei não é um ato legislativo. Declarar uma lei inconstitucional não é o mesmo que modificar ou alterar uma lei, mas sim declará-la como não existente, tornando nulos seus efeitos no passado e no futuro. Obviamente pode-se e deve-se questionar essa decisão do STF.

Mas do ponto de vista formal, e é esse ponto de vista que interessa que quando se fala em legalidade ou ilegalidade das eleições, o STF não alterou a legislação eleitoral a menos de um ano do pleito. O que a suprema corte fez foi declarar que um dos instrumentos legais previstos na regulação das eleições desse ano, a lei do voto impresso, não existe nem nunca existiu. Esse é o sentido jurídico-formal da inconstitucionalidade de uma lei.

Tese 4: O voto em cédula está previsto em lei e o Congresso Nacional pode aprovar um Decreto Legislativo obrigando o TSE a realizar a votação por cédula. 
Há todo tipo de falácia nesse argumento. Em primeiro lugar, a Lei 9.504, cujo link está mais acima, diz claramente:

Art. 59. A votação e a totalização dos votos serão feitas por sistema eletrônico, podendo o Tribunal Superior Eleitoral autorizar, em caráter excepcional, a aplicação das regras fixadas nos arts. 83 a 89.

A lei, portanto, é clara ao dizer que a votação e a totalização dos votos serão feitas pelo sistema eletrônico. A lei diz também que o uso de cédulas de papel ocorrerá em caráter excepcional, seguindo as regras estabelecidas nos Arts. 83 a 89, que versam sobre formato da cédula, cores, regras para a inscrição dos nomes dos candidatos e outros. Essa circunstância excepcional é explicitada no artigo que precede essas normas:

Art. 82. Nas Seções Eleitorais em que não for usado o sistema eletrônico de votação e totalização de votos, serão aplicadas as regras definidas nos arts. 83 a 89 desta Lei e as pertinentes da Lei 4.737, de 15 de julho de 1965 – Código Eleitoral.

Portanto, a lei eleitoral estabelece a norma geral válida, que é a votação eletrônica. E prevê as situações de excepcionalidade, quando então são empregadas as cédulas de papel, como já ocorreu em eleições anteriores em alguma sessões em virtude de falhas no funcionamento das urnas eletrônicas. O que o Congresso Nacional poderia ter feito há um ano é modificar o Art. 59 e estabelecer a votação por meio de cédula.

Um eventual decreto legislativo, que corresponde a um procedimento legislativo ordinário do Congresso Nacional, que viesse modificar a legislação eleitoral, transformando a exceção (a votação em cédula de papel) em norma geral e tornando sem efeito, portanto, o Art. 59, seria facilmente derrubado pelo STF pois corresponderia a uma mudança na lei a menos de um ano das eleições.

Tese 5: As urnas eletrônicas são inconstitucionais.
Essa afirmação é tão primária que chama-la de tese chega a ser uma concessão. Trata-se de um desdobramento mais banal da Tese 1 apresentada mais acima, e pode ser refutada com os mesmos argumentos. Se essa afirmação fosse hipoteticamente verdadeira, significaria que todos os governantes e parlamentares eleitos nos últimos anos, desde vereador de cidade do interior até presidentes da república, deveriam ter seu mandatos declarados como inválidos.

Consequentemente, todos os atos de governo dos últimos anos, desde quando foram introduzidas as urnas eletrônicas, deixariam de ter efeito, o que mergulharia o país num buraco negro institucional.

Nesse cenário, a completa e absoluta insegurança jurídica daí decorrente traria consequências sociais e econômicas devastadoras, instalando um caos que interessa somente às forças políticas que querem desestabilizar o País e com isso impedir que a direita chegue ao poder pelas vias democráticas e institucionais.

Considerações Políticas: As Motivações Ocultas
É preciso no mínimo suspeitar das reais motivações políticas daqueles que hoje, num arroubo de zelo pseudo-legalista, decidiram simplesmente empunhar a bandeira da suposta ilegalidade das eleições, usando como pretexto a demanda por voto em cédula. Cumpre também observar que durante anos os ativistas do campo da direita vêm denunciando as suspeitas de fraudes eleitorais com nosso atual sistema de votação eletrônica.

Mas curiosamente, bastou que o cenário político passasse a mostrar, pela primeira vez em décadas, a possibilidade real e concreta de a direita chegar ao poder para que subitamente houvesse uma mudança de discurso: deixou-se de falar em risco de fraude e passou-se a falar genericamente no problema da legalidade das eleições.

Essa mudança sutil de discurso, de risco de fraude para afirmação da tese da ilegalidade do pleito, revela ao nosso ver uma intenção política que nada tem a ver com o suposto zelo pseudo-legalista verbalizado pelos proponentes dessa tese. Trata-se na verdade de procurar construir uma narrativa que justifique a defesa da posição política já adotada de condenar as eleições, o que coloca esses proponentes no mesmo campo de interesse de segmentos intervencionistas e das esquerdas de modo geral.

O Crítica Nacional sempre sustentou a posição de defesa do voto em cédula quando havia a previsão legal do voto impresso. A nossa defesa era feita com base em uma argumentação legal sólida: como a lei determinava a impressão do voto na urna eletrônica, as urnas que não estivessem com a impressora deveriam ser consideradas defeituosas e sem atender os requisitos legais da impressão do voto. Portanto, nesse caso, deveríamos exigir que a votação ocorresse em cédulas de papel.

Essa posição que adotamos até pouco tempo atrás, juntamente com muitos outros ativistas, era baseada no principio da defesa da legalidade das eleições. Nesse caso, a legalidade significava: voto impresso ou voto em cédula (onde não houvesse impressão). Com a derrubada da lei do voto impresso, deixou de existir juridicamente a ilegalidade na votação por urna eletrônica, conforme explicamos acima. 

Entendemos que cabe agora, dentro das normas legais vigentes, exigir a transparência na totalização e na apuração até onde for possível. Mas em nosso entender, os proponentes da tese da ilegalidade apriorística das eleições estão equivocados, pois em nome da demanda correta pelo escrutínio público, estão advogando a posição já assumida por eles como profissão de fé: a de que se não houver votação em cédula de papel, as eleições deverão ser consideradas ilegais.

Essa postura, que denota uma ignorância ou falta clareza política em relação a disputa de poder em andamento, evidencia até mesmo a possibilidade de esses proponentes estarem sendo usados ou manipulados pelos nossos inimigos, o establishment político, para tentar a anulação das eleições. Isso ficou evidenciado em dois episódios relevantes nos últimos dias:

a) Formação de Frente Parlamentar Pelo Escrutínio Público
Os proponentes da tese da ilegalidade das eleições sem o voto em cédula conseguiram por meio da atuação de um lobby profissional de assessoria parlamentar viabilizar a formação de uma Frente Parlamentar em defesa do escrutínio público. Uma iniciativa que poderia ser considerada válida e correta em busca da transparência na apuração das eleições.

No entanto, o documento constitutivo da frente traz explicitamente a afirmação descabida de que as eleições poderão ser consideradas nulas ou inválidas se não forem atendidos certos requisitos calcados nas Teses de 1 a 5 apresentadas e contestadas nesse artigo. Ou seja, a Frente Parlamentar está sendo usada para, em nome da defesa de uma pauta correta e justa de transparência do processo eleitoral, validar a posição política de condenação das eleições sob pretexto de ilegalidade, com base em uma argumentação jurídica sofismática e infundada.

b) Audiência Pública Sobre Voto Impresso
Na semana passada foi realizada uma Audiência Pública na Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Deputados a respeito do voto impresso, onde estiveram presentes os principais proponentes da tese da ilegalidade das eleições. Nas mais de duas horas de audiência foram apresentados novamente os argumentos técnicos já conhecidos que evidenciam as falhas e limitações do sistema de votação eletrônica adotado no país.

Grande parte do tempo da audiência foi também dedicado à repetição das Teses 1 a 5 apresentadas e contestadas mais acima, com ênfase especial dada por alguns oradores de que estas eleições são ilegais e ilegítimas e que, portanto, devem ser contestadas de forma que seus resultados não podem nem devem ser reconhecidos. .

Conclusão:
(Diplomatica / convite a debate / falta aqui um parágrafo de conclusão política)