por evandro pontes
É comum, nas brigas de ego existentes na direita, que um ou outro pretendente ocasional a galardão eleitoral de 2018, saia dizendo que Bolsonaro foi eleito graças à sua fabulosa atuação nas redes ou àquele vídeo de youtube com sabe-se lá quantos milhões de visualizações.
A verdade é que ninguém liga tanto assim para redes sociais mais do que liga para pessoas. Por isso que, mesmo saindo das redes, muitos ainda se mantém nos trending topics sem sequer ter conta por lá. Assim, dizer que “as redes elegeram Bolsonaro” é um erro tão comum quanto achar que “fulano elegeu Bolsonaro”.
Ora, ora: quem elegeu Bolsonaro foi o povo brasileiro.
Mas eis ai o cerne da questão que vai além da leitura de uma pessoa com QI de dois dígitos: quem ou o que, de fato, fez com que o povo elegesse Bolsonaro? Esse vício de confundir pessoa com causa remota é um dos maiores indícios de analfabetismo funcional.
A causa remota da eleição de Bolsonaro não foram as redes – as redes foram o meio, o veículo e estão assim associadas a uma estratégia eleitoral. As causas estão associadas a um plano de governo. As causas se referem a um conteúdo, a estratégia, a uma forma. Plano de governo corresponde, portanto, a um conjunto de ideias. Desta forma, as ideias foram a causa remota pela qual o povo elegeu Bolsonaro.
As ideias necessariamente não surgem do nada e também não se auto-instalam no papel. As ideias que foram a causa da eleição de Bolsonaro são fruto da reflexão de homens e mulheres, bem como do debate e da discussão desses homens e mulheres que atuam como formuladores (em alguns poucos e raros casos) ou propagadores (maioria dos casos dos apoiadores mais intelectualizados e que milita no espectro da direita política) das tais ideias.
O bordão de que “pessoas são ideias” é coisa de revolucionário esquerdista, que desde Catilina, passando por Maquiavel e desaguando em Robespierre e Marat, querem fazer de pessoas o sinônimo de uma ideia. Desta forma “Hitler é uma ideia”, “Lênin é uma ideia”, “Stálin é uma ideia”, “Marx é uma ideia”, “Mao é uma ideia”, “Fidel é uma ideia”, “Che é uma ideia” da mesma forma que Lula, ao seu modo, tenta ser ele mesmo “uma [outra ou mesma] ideia”. Lula vem se esforçando bastante e acredito que vai conseguir obter esse sucesso e se igualar a essa gente toda.
Note o leitor e a leitora como essas posições específicas são completamente diferentes da máquina política que organiza as relações de poder na direita da política.
Olavo de Carvalho, por exemplo, não é uma ideia. Olavo tem ideias. Olavo formula ideias. Olavo propaga e divulga ideias. Mas Olavo, em si, não é e jamais será uma ideia. E neste particular, como propagador de ideias que foram causa da eleição de Jair Bolsonaro, Olavo foi uma figura importantíssima nesse processo, mas é necessário compreender que Jair não foi eleito por causa de Olavo, mas sim por causa das ideias que Olavo formula, defende e propaga. Essa é a razão pela qual Olavo não está presente no governo e isso, sob o aspecto político, não interfere diretamente (mas muito indiretamente) nas causas eleitorais remotas.
As fraturas de um núcleo soi-disant “não ideológico” que distancia Bolsonaro do dito “olavismo”, sob o prisma exclusivo de quem assiste os embates mais à direita, diz respeito exatamente às ideias – quando Bolsonaro se aproxima do núcleo “anti-olavista”, ele automaticamente se afasta das causas remotas que o elegeram, a saber, as ideias que se firmaram como motivação de voto para milhões de eleitores:
Um combate mais rigoroso a políticas de ideologia de gênero, desarmamento, uma defesa intransigente do combate à corrupção e à escalada da violência urbana e rural, o respeito incondicional à liberdade de expressão, bem como uma série de ideias que já são veiculadas em textos do Professor Olavo de Carvalho desde os anos 80. Ao abandonar essas ideias para consertar com o “centrão”, retoma-se a “velha política” sob o sacrifício de importantes causas eleitorais.
Digital influencers deram meios, jamais ideias. E por isso não são sequer causa remota dessa eleição vitoriosa (me espanta muito conseguirem levantar da cama todos os dias sem tropeçar, mantendo esse tipo de raciocínio egocêntrico). Contudo, toda regra geral comporta parágrafos. Há nessa regra geral que descrevi acima, um Parágrafo Único que atende pelo nome de Paulo Guedes.
O Ministro Guedes é obviamente uma exceção a essa regra, pois acredito que sem os youtubers Jair Bolsonaro seria eleito mesmo assim. Tanto é que quase todos mudaram de lado e o Presidente segue lá, firme e forte. Outro virão e desparecerão e Bolsonaro seguirá. Mas isso não se aplica a Guedes.
É absolutamente inquestionável que uma das causas diretas da eleição de Jair Bolsonaro centrou-se na garantia de presença do Ministro Paulo Guedes à frente da economia do Brasil. É daí que surgiu o bordão político do “Posto Ipiranga”, que deu ao eleitorado o conforto de que, sob a gestão Bolsonaro, nenhuma catástrofe econômica aconteceria causada por políticas de iniciativa do próprio governo, regra que assustou o mundo quando a economista Dilma Rousseff geriu os cofres do país com escudeiros como Mantega e Barbosa. Guedes, portanto, é ele, em si, uma das causas remotas da eleição de Jair Bolsonaro.
O Ministro Guedes talvez seja a figura política mais difícil de ser analisada: é o mais importante e mais fiel de todos os Ministros, é o mais genial, o mais completo sob o ponto de vista intelectual, o mais austero e corajoso e o único que, convenhamos, obteve enorme sucesso em carreira na iniciativa privada. Tirando Guedes, simplesmente nenhum dos ministros teve sucesso em qualquer campo na iniciativa privada ou no meio acadêmico. A esmagadora maioria, aliás, é feita de losers no campo privado e acadêmico.
Analisar Guedes talvez seja uma forma indireta de reconhecer que hoje, o Presidente da República está cercado de fracassados. Se assim o faz por sponte propria ou por deliberada “pressão política”, ai já são outros quinhentos. Para entender Guedes, é necessário compreender o conjunto de suas ideias. É preciso entender como ele as formulou, como as defende, como as propaga e divulga.
Guedes é o único Ministro que não se submete à esparrela de falar ao povo por meio de redes sociais e, sobretudo, do twitter. Após 20 meses de governo, Guedes provou-se corretíssimo em sua estratégia.
Para capturar as ideias de Guedes é necessário um esforço que nem 1% da população dispõe para gastar: é preciso ler seus trabalhos (que não são muitos os disponíveis), ouvir suas palestras e entrevistas e capturar o que tentei aqui humildemente resumir como Guedonomics – qual seja, o conjunto de ideias que descreve o Pensamento de Paulo Guedes.
O Ministro Guedes já ultrapassou o âmbito da mera burocracia e hoje ocupa um lugar na História do Brasil entre os maiores pensadores e, em matéria econômica, ouso dizer, o maior de todos.
Guedes se define como um liberal. Mas ao notar como ele se posiciona diante de problemas atuais, vemos uma afiliação bastante próxima ao do pensamento clássico de Smith. Muitos diriam que, sim, Guedes está correto em se autodefinir dessa forma, pois, não seria Smith o “pai do liberalismo clássico”?
Essa discussão eu já tracei em outros foros e venho já há algum tempo revisitando a obra de Smith, que era de fato um conservador, para entender o núcleo de sua ideia não apenas no âmbito isolado da Riqueza das Nações (uma afirmação, em si mesma, conservadora ao defender no título a riqueza das nações e não dos indivíduos). O mesmo pode-se dizer em relação aos escritos de Ricardo e mais recentemente de Pareto. É dessa afiliação que vejo a linha de pensamento de Guedes, como forma de se afastar de outros como Jevons e Walras e mais ainda de Galbraith e Schumpeter.
Para isso, é necessário compreender Smith para além da Riqueza das Nações e no âmbito específico de sua Teoria dos Sentimentos Morais. Smith, antes de ser um “liberal clássico” foi sim um conservador. Ao meu ver, mais que “pai do liberalismo”, Smith foi sim pai de uma escola econômica conservadora. E não se trata apenas de uma questão de nomenclatura: é na Teoria dos Sentimentos Morais que Smith vai cuidar do sentido do direito de propriedade.
Não só: Smith encara problemas como o conceito de Justiça bem como das preciosas e fatais observações sobre as virtudes morais permitindo pontes com Platão, Aristóteles, Cícero e a filosofia de Doutores da Igreja como Santo Ambrósio, bem como de rabinos como o Rambam (Moshé Maimônides).
Ao tratar da Justiça, da Beneficiência e da Benevolência em sua Teoria dos Sentimentos Morais, Smith dá outra conotação para qualquer leitura que se venha a fazer de seu Riqueza das Nações, bem como de outros que se lhe seguiram, como Ricardo. Poucos perceberam isso – dentre esses poucos, Jesse Norman publicou recentemente (2018) obra sobre o tema que vale a consulta (Adam Smith – What He Thought, and Why it Matters).
E é por ai que podemos compreender a grandeza do que chamo de Guedonomics. Algo que, hoje, nem sequer Trump desfruta e tem acesso direto – nisso, portanto, o Brasil de Guedes está em condição muito mais privilegiada que os Estados Unidos de Navarro.
Capturar o pensamento de Guedes, entretanto, não é algo simples, vez que ele mesmo tem pouco material escrito sobre seu pensamento. Apesar de tais pesares, o que Guedes já ofereceu oralmente, é bastante suficiente para segregar seu pensamento de outros economistas como Gustavo Franco e Armínio Fraga.
Basta observar como Guedes encara o conceito de direito de propriedade quando trata de temas relacionados a lida de ativos públicos. Sua postura perante a reserva de dólares (sacada genial que rendeu bilhões aos cofres públicos) mostra bem como Guedes traz para a prática coisas que Smith formulou no âmbito teórico. Isso impõe ao observador que aceite um retorno a Adam Smith para compreender como Guedes pensa acerca de questões de economia política, com base na sua experiência de ex-banqueiro.
Muitas outras observações que parecem superficiais mas não o são, por fazerem parte de um suporte ao seu pensamento de economia política. Demarcam profundo apreço pelas ideias de Smith acerca da propriedade privada, bem como, mais hodierna e contemporaneamente, a extrema afinidade como a defesa intransigente da liberdade de expressão, a imensa ojeriza à “velha política” (a política do clientelismo do “toma-lá-dá-cá”), o combate à corrupção e à violência urbana e rural gerada por leniência judicial, as incertezas jurídicas causadas pelas gracinhas feitas por cortes superiores, e a sua positiva compreensão de que pautas como ideologia de gênero merecem baixa prioridade, com todo respeito às diferenças que não se tiram com bisturi.
Isso define e explica a parte, digamos, macro do pensamento de Guedes. Mas a Guedonomics, que é uma extração desse pensamento transformada em ação política governamental, já foi decantada pelo Ministro inúmeras vezes por meio dos tais quatro pilares, a saber: 1. abertura da economia; 2. simplificação tributária; 3. privatizações; 4. agenda de reformas (em especial a da Previdência).
Quero aqui apenas jogar o foco no item 4.
Parece ter sido uma agenda que teria cumprido sua tabela, com a aprovação da reforma previdenciária, mas o surgimento da necessidade de outras reformas, como a administrativa, ao lado da política e da tributária (falsamente associada ao item 2), remonta uma gigantesca necessidade de revisão do Pacto Federativo e das funções políticas e fiscais dos Estados.
A pandemia veio para explicitar isso e o embate dentro do governo para se reforçar políticas assistencialistas, trouxe outro elemento para a mesa de debates: a questão da austeridade fiscal, que atende pelo vulgo palaciano de “teto de gastos”.
O quarto pilar poderia, desta forma, ser expresso pela premissa do intransigente respeito ao teto, mas nem assim, creio, o tema (a saber, a preocupação, enfim, a ideia) estaria devidamente coberta. Ao falar de previdência, Guedes parece ter querido falar de reformas. E ao pensar em reformas Guedes certamente tinha em mente a austeridade fiscal. Mas toda vez que o Ministro trata da austeridade fiscal (aka, “teto”), o que de fato ele quer dizer, se relaciona diretamente com o problema do pacto federativo e das competências legislativas dos arts. 22 a 24 da Constituição Federal.
Guedes, durante a campanha de Bolsonaro, foi o único a propor uma verdadeira revolução na economia política brasileira, a começar pela ideia do Orçamento Base Zero.
Mas certamente que o Ministro não contava, durante a campanha, com o elemento surpresa “milico-desenvolvimentista”, cuja fratura interna se tornou clara e pública quando o Ministro Celso de Mello resolveu dar vazão à integra do video da reunião ministerial que o outro Ministro, o Moro, falsamente acusou o Presidente Bolsonaro de interferência.
O mais importante desse “vazamento” foi ter deixado claro a todos que o governo vive um embate entre uma das (e, talvez, a maior e mais importante) causa remota da eleição do Presidente Bolsonaro versus a sanha quase adolescente de gastos para serem transformados em capital político, que pode eventualmente ser colhido em 2022.
Isso conflita com o pensamento de um homem que espelha em 2020 valores que, na História da Economia Política, eu só vi serem defendidos pelo conservador Smith.
Esse embate do meio do ano chegou, digamos, ao seu nível mais alto nesta semana, quando a horda de interventores e desenvolvimentistas achou em porções de arroz um motivo para enfiar sua colher em cru alheio.
O Ministério da Justiça, ao soltar um pedido de satisfações sobre alta de preços, sinaliza perigosíssimo flerte com o controle de preços de commodities, algo que nem mais a Argentina pensa em fazer em seu pior momento histórico.
Essa especulação, se bem me lembro, já havia rondado o governo no início de 2019 quando o Ministro Guedes viajava pelos EUA e alguém soltou na imprensa, de maneira maldosa e maliciosa, a informação de que Bolsonaro pensava em interferir no preço do combustível. Em menos de duas horas de pregão ao final de uma tarde de sexta-feira, a Petrobrás perdeu mais valor de mercado do que a Vale viria a perder com a tragédia de Brumadinho, algo que a CVM nunca investigou direito, sabe-se lá porque, vez que a especulação sobre intervenção na Petrobrás provou-se falsa.
Corretamente, a interpelação formal do Ministério da Economia a essa medida estapafúrdia e que mostra perigoso afã em intervir na economia (algo infinitamente mais grave do que a acusação de “interferência na polícia federal”) não somente mostra o grau de despreparo de certo círculo de assessores no planalto, mas sobretudo de distanciamento da causa remota que elegeu Jair Bolsonaro em 2018, conforme exposto no início deste artigo.
Assim, Bolsonaro, ao desgarrar-se do Guedonomics coloca, acima de tudo, em grave risco político, a causa que o elegeu em 2018. Talvez ela não volte a ser, com a mesma força, a causa de 2022, mas já desprezá-la neste meio de caminho em 2020 é risco que não convém correr.
E neste delicado momento da Nação, na semana em que comemoramos (ainda) o 198º aniversário de nossa Independência, é prudente que o Presidente Jair Bolsonaro advirta ao Ministério da Justiça que tire a colher do arroz do Ministério da Economia e, por sua vez, coloque mais água no próprio feijão na panela da Justiça, pois a coisa por lá e nas imediações do STF, convenhamos, não anda bem e pode queimar em breve.
Suum cuique tribuere, como diriam os juristas romanos.